quarta-feira, 19 de abril de 2017

Eterno Retorno Maçônico:

A vida para além da morte
Márcio Moraes, M\I\
Acadêmico da Cadeira nº10 da ACADESUL

Eis que tendo travado uma luta com seu irmão Seth, o qual ambicionava se apoderar do reino do Egito, Osíris sai golpeado e seu corpo esquartejado. Dos pedaços, que foram espalhados por todos os lugares, saiu sua irmã Isis em busca. Junta todos, à exceção do pênis, que jogado no Nilo fora devorado por um peixe que o levou ao fundo do Rio, inviabilizando-se assim o retorno de Osíris ao mundo dos vivos.  Muito tempo após a morte do Osíris, Isis pousada sob o cadáver de Osíris é fecundada com Hórus. Hórus, nascido, busca vingar o pai e na batalha em que vence Seth tornando-se rei dos vivos perde seu olho esquerdo, o olho da Lua. Está é apenas uma das possíveis versões desta lenda milenar.
O Sol, em uma Loja, é o Venerável Mestre e inicia sua jornada no Oriente, onde aquele toma seu assento. A transmissão da palavra sagrada faz-se assim, por analogia, movimentação solar, que leva a luz (a própria palavra) a todos os quadrantes da Loja. A energia vibracional que circula com o som da palavra entra e se mistura em todo recipiendário que a ouve. Certamente as oscilações sonoras, absorvidas pelo corpo vibrátil do maçom, produzem seus efeitos. É desta interação de frequências oscilatórias, de um lado da palavra sagrada e de outro da própria pedra bruta, que emerge uma terceira frequência, ressonante à combinação das suas constituintes. A ressonância se propaga, para cima e para baixo, no sentido hermético. Acima, encontra outras ressonâncias, de frequências mais altas. Abaixo, encontra também outras ressonâncias, porém de frequências mais baixas, e por isso mais permeáveis às ondas que emana.  Uma onda de energia permeia com mais facilidade as ondas de frequência mais baixas.
O maçom, pedra bruta ressonante, provoca alterações nos mundos superiores, em menor proporção, e nos mundos inferiores, em maior proporção.  Da mesma forma, recebe a influência das vibrações que ressoam nos mundo superiores em maior proporção do que aquelas que lhe penetram vindas dos mundos inferiores. Assim, somos diretamente responsáveis pelos progressos de baixo, assim como somos em parte determinados pelos progressos de cima. É a lei hermética da correspondência: “o que está em cima é como o que está embaixo e o que está embaixo é como o que está encima”.
A frequência vibrátil, genuína manifestação da vida originada pela palavra, colide com a pedra bruta, se fragmenta em diversas harmônicas ressonantes. Já não se consegue mais, pela união das ressonantes resultantes, obter o som primordial. É tal qual Osíris mutilado onde a questão primordial não é trazê-lo do mundo inferior, mas a partir dele fazer nascer Hórus.
Quando, em Loja, recebemos a palavra sagrada ou qualquer tipo de instrução somos provocados a repetir o som, eventualmente repetir a instrução para novos irmãos. Por mais que a palavra circulante em tese seja a mesma e que nossos ouvidos nos digam da imutabilidade dela, no nível vibracional, o sujeito que a enuncia coloca sua energia na enunciação. Já não importa necessariamente o que se diz, mas de onde se diz. Qual pedra produz aquele som, eis a boa pergunta. As pedras se transformam pela passagem da onda e retornam ondas que são sínteses desta transformação.
A transmissão do conhecimento maçônico se baseia em uma suposta repetição. Ao aprendiz se pergunta como se pode saber sê-lo um, no que responde: “pelo sinal, pela palavra, pelo toque e pela repetição das formalidades de minha iniciação”.
Ora, por acaso são iguais os sinais, os toques e as palavras? E as tais formalidades são iguais? Notadamente, sem que seja necessário se adentrar em um estudo histórico bibliográfico sabemos que há uma série de divergências longitudinais (ditas temporais) e transversais (ditas ritualísticas) nestes sinais de reconhecimento que em tese deveriam ser permanentes conforme o landmark. Parece que a existência de sinais de reconhecimento é menos perene que os sinais em si.
E se, por apenas um exercício mental, que nos é fundamental à perpetuação da Ordem, crêssemos na efemeridade destes sinais? Estaríamos crendo que a repetição é possível e necessária e que temos a capacidade de experimentar e atuar situações sem que nosso lugar e condição possam afetar tais fenômenos.  Deixaríamos de ser pedra ressonante e nos tornaríamos espécie de espelho que não se deixa tocar e que tudo reflete.
As experiências afetivas demonstram facilmente que somos seres permeáveis aos afetos que desenvolvemos com nossos pares. Não somos espelhos frios. Reconhecer teria relação assim com conhecer novamente, conhecer o novo, de novo, e não identificar um padrão de repetição. Em toda repetição haveria, pois, uma espécie de transgressão à identidade. Toda palavra que circula, todo sinal que é repetido, não seria idêntico a si mesmo, ao primeiro sinal feito, à primeira palavra enunciada. Perdeu-se e buscamos esta tal palavra perdida como se fosse possível encontra-la fora de si mesmo.
Nem todo conhecimento do panteão egípcio pôde repetir o Osíris primevo. Só quando Isis percebe a fragilidade da duração (Osíris não é e é eterno ao mesmo tempo) que se cria a possibilidade para o surgimento de Hórus. Osíris, castrado, insiste e persiste, soa e ressoa sua energia vibracional no Hórus, que por sua vez igualmente leva a marca da energia primordial: é castrado do olho, do poder do olho, simbolizado a partir do século XVII com o olho que tudo vê. A morte de um, habita a vida de outro, e vice-e-versa. É como se a vida fosse a somatória da energia cósmica e que esta fosse uma constante e que suas componentes mudassem na medida em que os corpos entre si interagissem.
Neste sentido, a circulação na Maçonaria, expressão real da vida, seja talvez mais importante que o que circula, ou quem circula. É pela circulação que a energia se move e a tudo permeia, transformando a natureza dos corpos e da própria energia. Quão belo é ver, por exemplo, o Venerável Mestre chegar ao ápice da alegoria do mundo superior para depois, em ressonância à Lei da Catência, retornar à Guarda do Templo, permeando-se novamente das energias do mundo inferior, que lhe são afinal constituintes e determinantes desde o sempre. A circulação aí seria a antítese da repetição. O Venerável Mestre que repete o encargo de Guarda do Templo já não é mais o mesmo, mas precisa reconhecer, ou seja, conhecer de novo, aquele lugar esotérico, para, descendo, então subir. Não repete um evento que já experimentou. Circula por um lugar por onde já passou, mas que agora lhe parece estranhamente novo no sentido dado por Marcel Proust: “A verdadeira viagem do descobrimento não consiste em procurar novas paisagens, mas em ver com novos olhos.”
E, nesta cadência de catências, sobe e desce, emana sons, é atravessado por sons, ressoa sons, transforma e é transformado, em cima e embaixo, para então somente assim, evoluindo o que lhe rodeia conseguir evoluir. Osíris só vive por causa de Hórus e este só vive por causa daquele. Não se cuida de repetir formalidades ritualísticas, tampouco crer que rituais são meras repetições. Não há a repetição. O que há é a diferença, e para, além disso, a marca da diferença. A repetição é uma conduta necessária e fundada apenas em relação ao que, em tese, não pode ser substituído. Repetir é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que não tem semelhante ou equivalente. Inexiste aquilo que não possua seu equivalente. Inexiste a repetição. A palavra que o Venerável Mestre emana do oriente chega justa e perfeita ao Irmão Segundo Vigilante, mas não repetida, tampouco igual, no sentido vibracional.
A diferença é o princípio constitutivo da natureza, é aquilo que modifica para evoluir e evolui para modificar. A maçonaria é universalmente constituída de diferenças. Desde os tempos mais remotos, a filosofia sempre demonstrou ter uma espécie de repulsa por tudo aquilo que se modifica, uma repulsa pelo próprio tempo e pela degradação inevitável que ele acarreta nos seres. Não pode haver ciência daquilo que está em perpétua transformação - assim Platão rejeita o mundo sensível em prol de uma existência imutável (a do mundo das essências). A mudança, o rio que não para de fluir, o movimento incessante das coisas como o próprio ser deste mundo, tudo isto deve ser ignorado pela razão, uma vez que sua natureza estritamente lógica não sabe lidar senão com a semelhança e a identidade nos seres.
Diz-se a Maçonaria uma Ordem progressista, no Brasil inclusive sob o ícone de nossa bandeira “ordem e progresso”. Crê-se que a repetição de atos prescritos em leis e em formalidades pode garantia a ordem e que é somente na ordem que a evolução, equiparada ao vocábulo progresso, pode surgir. A Lei da Catência, já comentada, diz claramente que um ente chegará em determinada etapa de sua etapa evolutiva que será mais fácil regredir para então se impulsionar ao progresso suplantando assim a etapa ulterior.
Isis tentou ordenar os pedaços de Osíris, mas não progrediu em seu intento de dar vida ao amado. É a diferença, enquanto acontecimento inusitado que emerge do encontro dos copos (a mortalha de Osíris e as lágrimas de Isis) que possibilita o progresso da humanidade. A repetição manteria o status quo, da zona de conforto, violaria a seleção natural das espécies, acabaria com as evoluções mutacionais, conduziria à morte em vida, ao eterno retorno do mesmo, no sentido dado de forma provocativa por Nietzsche:
E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?" (Friedrich Nietzsche em A Gaia Ciencia)
A diferença entre os maçons é justamente este espaço entre os maçons. Zona de força, espaço de ressonâncias, o espaço delimitado pelas duas linhas, portal ascensional, enfim, tudo que há entre o norte e sul é a diferença. É neste embate, nestas adversidades, que circula a palavra sagrada mudando e se deixando mudar, em sua natureza, mas não em sua potência.
O que devemos buscar não é a ordem (forma de organizar elementos), calcada ou recalcada na repetição, mas a Ordem projetada pela potência, pela vontade de potência em progredir: o tornar-se hoje mais livres do que fomos ontem e assim sucessivamente.
Somente quando percebermos que os pedaços de Osíris unidos são maiores que o Osíris primevo e que a suposta impotência anunciada pela castração é o acontecimento que anuncia e potencializa a diferença simbolizada pelo advento de Hórus, poderemos então empreender a grande aventura existencial. Entenderemos que somos muito mais constituídos por aquilo que nos transborda, pelos sons que ressonamos, do que por aquilo que supostamente nos falta, pelos sons que buscamos. O que circula é o eterno retorno, do novo.
“A grande aventura existencial consiste em empreender uma longa jornada e depois de terminá-la chegar ao mesmo ponto de origem e admirá-lo como se fosse a primeira vez que o vê”.(Marcel Proust na obra Em Busca do Tempo Perdido)
_________
REFERÊNCIAS
COLETÂNEA MAÇÔNICA: Landmarks, Porto Alegre: Grande Loja Maçônica do Estado do Rio Grande do Sul, 2008.
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Lisboa: Relógio D´Água, 2000.
NICOLA, Ubaldo. Antologia Ilustrada de Filosofia: das origens à Idade Moderna. São Paulo: Globo, 2006.
NIETSZCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PLATÃO. A República. São Paulo: Nova Cultural, 1997.
PROUST, Marcel. Em Busca do Tempo Perdido: no caminho de Swann. Vol. 1. São Paulo: Globo, 2006.
RITUAL DO GRAU DE APRENDIZ MAÇOM: Rito Escocês Antigo e Aceito. Porto Alegre: Grande Loja Maçônica do Estado do Rio Grande do Sul, 2008.
SEGANFREDO, Carmen; FRANCHINI, A.S. As Melhores Histórias da Mitologia Egípcia. 1. ed. Porto Alegre: L&PM, 2006.


Um comentário:

  1. Longo texto, muito interessante. Há muito a se aprender, para começar a compreender as profundidade do que aí está contido.

    ResponderExcluir