terça-feira, 2 de maio de 2017

Vontade...

Vontade de poder enquanto princípio criador:
da morte de Deus até o landmark sobre a crença no Grande Arquiteto do Universo.
Márcio Moraes dos Santos, Mestre Instalado da ARLS Feitoria Real nº122 da MRGLMERS
Acadêmico Titular da Cadeira nº 10 da ACADESUL

         Dificilmente poder-se-á afirmar com segurança os motivos pelos quais Nietzsche desenvolveu seu conceito de Vontade de Poder (ou Vontade de Potência dependendo da tradução). Todavia, a gênese de sua obra, a partir do conjunto de proposições ontológicas e epistemológicas, sugere que este conceito foi criado como base para o desenvolvimento de outras ideias daquele que dizia fazer Filosofia a golpes de martelo.
         A Vontade de Poder é uma proposição (ou como ver-se-á adiante também uma preposição) ontológica que sustenta toda a teoria do filósofo alemão, partindo do pressuposto, para fins didáticos, de que seria possível imaginar uma teoria de Nietzsche. Inclusive sua genealogia da moral é concebida consoante à ideia de Vontade de Poder. É a partir desta ideia que Nietsche construiu sua crítica tanto à Filosofia ocidental pós-socrática quanto ao próprio cristianismo.
         Contudo, para se compreender o conceito de Vontade de Poder (ou de Potência) é necessário compreender seu conceito oposto: a Vontade de Verdade.  Esta vontade seria o desejo que motiva o homem a uma verdade eterna e imutável que estaria por trás (ou antes) da realidade, algo análogo à essência em Platão. Nietzsche, com sua Vontade de Poder, estabelece uma crítica ao crer que a Vontade de Verdade teria uma intenção prática e política de nivelar os homens, normatizar a vida e reduzir o livre pensamento, freando os desejos e impulsos que historicamente desenvolveram a humanidade.
         Para Nietzsche a Vontade de Verdade, enquanto força de controle, se revela nas religiões e na Filosofia pós-socrática como um desprezo pelo mundo, fazendo o homem se dirigir para um suposto além-mundo, fomentando uma valorização de uma criada dimensão espiritual que acabaria por desligar o homem da realidade, tornando-o propositadamente fraco, doente e manipulável. Neste sentido, muitos anos depois, Foucault (1993) colabora ao discutir a docilização dos corpos, o surgimento da medicina social e os sistemas de vigilância e punição, modelos de coerção baseado na premissa de que existe uma verdade à priori e que aqueles que a possuem também possuem um determinado saber-poder sobre os demais.
         Nesta linha, poder-se-á dizer que até mesmo o ateísmo é uma Vontade de Verdade, uma crítica estéril a um Deus que (segundo Nietzsche) não existe, gerando uma atividade filosófica inútil. Nietzsche fala que a modernidade foi tomada por uma Vontade de Verdade que atenta contra a vida e que todos os valores que atualmente são difundidos nas sociedades ocidentais são como doença, por serem valores infestados de preconceitos morais que degeneram o homem. Esta estratégia fez com que o ocidente gerasse homens fracos, “humildes” e dignos de pena. A valorização espiritual acabou por gerar uma precariedade espiritual, fato facilmente observável, por exemplo, pela proliferação de denominações religiosas neopentecostais que, sob a suposta égide de serem os arautos da verdade celestial precarizam totalmente a relação do homem com o sagrado em diversas oportunidades. A Vontade de Verdade é¸ para Nietzsche, uma mentira.
         Por outro lado, a Vontade de Potência (ou de Poder) é uma vontade de vida, não de saber a verdade da vida, mas de vive-la. Nietzsche toma inicialmente este conceito (a vontade) de Schopenhauer (2005): é uma forma cega e insaciável que estaria além dos sentidos humanos. A Vontade de Poder representa (e a ideia de representação aqui pode ser um problema) tudo o que pode ser visto, ou seja, a realidade, sendo assim o substrato que constitui a existência (e não sua essência em termos platônicos).
         Mas, para Nietzsche, a vontade não está fora do mundo, ela se dá na relação, ou seja, é múltipla e se mostra como efetivação do real. É impossível uma só força, uma força única e indivisível, posto que a Vontade de Potência se diz sempre no plural, conjunto de forças. Sendo assim, o mundo estaria em luta constante, sem equilíbrio possível, em tensão que se evidencia pelo movimento das forças relacionais, às vezes delicado, outras vezes violento.
         A vida é Vontade de Potência, mas não se pode restringi-la apenas à vida biológica, posto que esta vontade está presente em toda a realidade: desde as reações químicas mais simples até a complexidade do psiquismo humano. É uma vontade que procura expandir-se, superar-se, juntar-se a outras forças e se tornar maior. Tudo no mundo, segundo Nietzsche, é Vontade de Potência, porque todas as forças procuram sua própria expansão. Neste espaço de instabilidade e embate de forças (ação e reação) instáveis, a permanência e a identidade são banidas; neste mundo reina a diferença. A Vontade de Potência, pode então ser também pensada como superação, como um constante (no sentido de reiterado) ir para além dos próprios limites.
         A vontade se apresenta no real como sede de dominar, conquistar e ampliar territórios, fazer-se mais forte, constranger outras forças e assimilá-las. Urge, então, a pergunta: quanto pode uma força? A onda mecânica de som que se propaga, a magnética que atrai nos imãs, a força da divisão celular que forma novos tecidos, o animal que domina o outro, tudo são exemplos desta vontade, a qual permanece em constante expansão e transformação sem nunca encontrar ponto de repouso.  Cada força, expressão da vontade, quando dominante, abre novos horizontes, encontra novas passagens, cria novos caminhos.
         Analogicamente, se em Física a potência é a capacidade de se realizar um trabalho, na Filosofia de Nietzsche a Vontade de Potência é a capacidade da vontade de efetivar-se. Para Nietzsche, o homem não quer apenas conservar-se em suas zonas de conforto ou adaptar-se às adversidades da vida para, então, sobreviver. Este comportamento seria típico de um homem doente. O homem quer expansão, domínio, criação de valores, significar e fazer sentido, enunciando assim um papel ativo na realidade ao criar suas próprias condições de potência a partir de uma efetivação que só é possível pelo embate das forças, dos corpos.
         E o que é potência? É um eterno dizer-sim, enunciado ativo. A potência se afirma (e efetiva) na vontade quando diz sim ao devir. O sentido é o resultado dessas forças, que se exprime pela cognição: a vontade aí é a Vontade do Poder, ou o que quer o poder.
         Em Assim Falou Zaratustra, Nietzsche (1998) anuncia a vontade: “eis o nome libertador e mensageiro da alegria: assim vos ensinei eu, meus amigos”. A realização da vontade tem por consequência a alegria, fórmula simples, mas tão ignorada.
         A Filosofia de Nietzsche propõe que o homem, para ser feliz, deva se apropriar de sua Vontade de Poder (ou de Potência) para poder voltar a criar valores e não apenas os reproduzir. Somente assim poderia o homem experimentar e experimentar-se no mundo, estabelecendo novas cognições e ultrapassando os valores do seu tempo.  Somente a partir desta apropriação de sua vontade poderia o homem se livrar de toda genealogia da moral que lhe impôs uma camisa de força dogmática e moral por séculos de civilização apoiada na transcendência. Para Nietzsche, o “poder” da Vontade de Poder permite uma análise imanente (e não transcendente) capaz de compreender o mundo sem ceder às explicações metafísicas (calcadas predominantemente pelas religiões) a fim de se promover a criação de novos sentidos, superando os atuais, em franco movimento de superação e expansão.
         A Vontade de Poder em Nietzsche decorre de duas preposições:
         - Primeira preposição: o total da força que existe o universo é determinada, não infinita. Deduz-se que o número de situações e combinações dessa força é mensurável (posto que finita).
         - Segunda preposição: o tempo é infinito e antes deste momento (presente) houve uma infinidade de tempo.
         Ao não admitir a existência de Deus, do Criador, Nietzsche admite que a matéria, essa energia da qual é constituído o universo, não pode ter sido criada. Assim, ele sempre existiu e nunca foi criada. Se ela existe não-criada ela deve estar aqui desde sempre. Existindo desde sempre, se houvesse tendência ou estado a ser atingido, a eternidade é tempo suficiente para que já tivesse sido atingido, pois, repisa-se, houve uma infinidade de tempo até o agora.
         Inexistindo tendência de aumento ou extinção da força constitutiva do universo, se deduz que a força que hoje existe tem de ter estado eternamente ativa e igual. Todos os desenvolvimentos possíveis já devem ter acontecido (pela infinidade do tempo pregresso) e todos os instantes seriam eternas repetições.
         Ainda propõe Nietzsche que não existe repouso nas forças, pois se elas estão em um infinito de tempo para trás em atividade, tal estado (de repouso) já teria sido alcançado se fosse possível e perduraria, em cumprimento a uma hipotética tendência que não se evidencia.
         Esse mundo das forças (a qual Nietzsche chama de Eterno Retorno) é circular na medida em que retorna e sem nenhuma tendência, senão já a teria alcançado.
         A partir da noção de algo originário, nunca em repouso, mas em constante devir, da dedução de que o embate das forças jamais encontra equilíbrio, se constrói o conceito de Vontade de Poder, anunciada nos textos de 1881 (nos fragmentos póstumos), em livre tradução do espanhol:

“E sabeis... o que é pra mim o mundo? (...) Este mundo: uma monstruosidade de força, sem princípio, sem fim, uma firme, brônzea grandeza de força... uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acréscimos, ou rendimento,... mas antes como força ao mesmo tempo um e múltiplo,... eternamente mudando, eternamente recorrentes... partindo do mais simples ao mais múltiplo, do quieto, mais rígido, mais frio, ao mais ardente, mais selvagem, mais contraditório consigo mesmo, e depois outra vez... esse meu mundo dionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio, do eternamente-destruir-a-si-próprio, sem alvo, sem vontade... Esse mundo é a vontade de potência — e nada além disso! E também vós próprios sois essa vontade de potência — e nada além disso!” (NIETZSCHE, 2008)
        
Usando a terminologia de Nietzsche, a Vontade de Poder é uma lei originária (sempre existiu), sem exceção nem transgressão. Vontade de Poder não está desta forma relacionada a nenhum tipo de força física, dinâmica ou outra, mas é a lei originária que rege estas forças secundárias na economia deste sistema chamado universo, ou mundo. É a essência (tendo todo o cuidado com esta terminologia) e a própria “luta das forças” que formam a economia universal, impulso que reage e resiste no interior das forças, uma multiplicidade de forças que em suas graduações se manifesta na sua forma última em fenômenos políticos, culturais, astronômicos, permeando a natureza e o próprio homem. Com isso, o filósofo proclama que a Vontade de Poder não é algo criado ou que dependa de algo precedente, como teorias, religiões ou cosmogonias pois esta força é a própria realidade.
Vontade de Poder não é teológica ou dogmática. É o modo como se comporta aquilo que não pode ter finalidade ou sentido (o sentido da vida, a finalidade da vida humana, etc). Para Nietzsche a Vontade de Poder não é um ser, nem um devir (um tornar a ser), é um pathos, no sentido dado por Descartes de que “tudo o que se faz ou acontece de novo é geralmente chamado (pelos filósofos) de pathos” (LEBRUN, 1987, p. 17).  A Vontade de Poder é um adoecimento de si mesmo, uma forma possível de se visitar o interior da terra. O conceito de vontade de poder pode também ser entendido como o desejo insaciável de se ser mais do que aquilo que se é presentemente.
Não há, pois, nada anterior ou posterior à Vontade de Poder no real. A realidade é a expressão desta vontade. Não há um fora do mundo, um plano metafísico a ser atingido. Há apenas um mundo visto de dentro:

“O mundo visto de dentro, o mundo determinado por seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente ‘vontade de potência’, e nada mais.” (NIETZSCHE, 2002, §36)

Até este ponto foi possível, em parte, dar razoável clareza à concepção de Nietzsche em torno de sua Vontade de Poder (ou Potência), reiterando que se fala acerca da vontade (de expansão) da potência (de vida). A partir disso pode-se, então, iniciar a análise de um importante landmark da Maçonaria, à luz do Deus morto de Nietzsche. Repisa-se, para fins históricos, que os landmarks, limites balizadores da Maçonaria, apareceram pela primeira vez, com esta expressão, na compilação dos Regulamentos Gerais de 1721, incluído na Constituição de James Anderson.
“19º Landmark: A negação da crença no Grande Arquiteto do Universo é impedimento absoluto e insuperável para a iniciação.” (GLMERGS, 2010)

O candidato, para ser admitido maçom, dentre tantos outros critérios, presta uma série de juramentos de obediência, sob proteção do Grande Arquiteto do Universo. Em diversos rituais, inclusive no ritual de iniciação, a Maçonaria, em especial o Rito Escocês Antigo e Aceito, designa Deus como sendo o Grande Arquiteto do Universo. Este Deus maçônico representaria todas a deidades de todas as crenças, posto que na Maçonaria se admitem homens de todas as religiões e inclusive os que não professam religiões mas acreditam em um princípio criador ou em um ser superior, o que evoca a tendência quase hegemônica das obediências maçônicas adotarem posturas monoteístas. Evidentemente que o Rito Escocês Antigo e Aceito, por exemplo, tem fortes influências do judaísmo e do cristianismo.
Ora, por mais que a Maçonaria preste seus juramentos sobre um livro sagrado de revelação e que, mais radicalmente, o Rito Escocês adote a bíblia sagrada como livro ritualístico, não é correto afirmar que a Ordem tem postura teísta (baseada na revelação). Pelo contrário, uma série de características dela acabam por configurar condutas deístas:
a)     Exige-se a crença em um Grande Arquiteto do Universo, ente superior e criador, sem a obrigação da prática de uma religião.
b)    Estimula-se o uso da razão para conhecer e interpretar, sem a ascendência dogmática da palavra revelada.
c)     Defende-se a liberdade de se encontrar a espiritualidade na religião que lhe for mais aprazível.
d)    Estimula-se o livre pensamento, cujas convicções não decorem por força de uma tradição ou de uma autoridade decorrente de outros.
Se por um lado o deísmo se coloca como postura filosófico-religiosa que admite a existência de um Deus criador, por outro questiona a ideia da “inquestionável” revelação divina, ou seja, o texto sagrado, escrito por homens, não traduz nenhuma revelação deste Deus em termos literais. A razão, ao deísta, seria a única capaz de assegurar a existência de Deus, descartando-se a necessidade da prática de alguma religião institucional.
O teísmo, por outro lado, é a crença na existência de deuses, um ou mais, havendo ou não hierarquia entre eles. Algumas religiões são teístas e especialmente as religiões monoteístas dos judeus e dos cristãos influenciaram a Maçonaria.
Esclarecidos estes conceitos e justificada a ideia de que a Maçonaria ora transita por condutas teístas e em outros momentos por ideias deístas, abre-se a pergunta salutar:
“E se o Grande Arquiteto do Universo não fosse um Deus, concebido sob preceitos antropomórficos? E se ao invés de um sujeito ele fosse uma ação?”
         Imediatamente, para responder a esta pergunta é importante remeter ao texto sagrado:
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se faz..” (JOÃO 1:1-3 in BIBLIA, 1980)
         Ora, sem forçar uma exegese, fica claro que há uma subjetivação da ação. Verbo, no texto, é um sujeito, mas mais do que isso, um sujeito em ação.
         A crença maçônica no Criador incriado, ser superior, pressupõe que houve um princípio da criação e, que antes deste ponto temporal, tal Criador existia e infinitamente sempre existiu. Assim, todas as coisas decorridas após a criação seriam criaturas. Contudo, utilizando o mesmo texto sagrado, podemos remeter a criação de Adão, cujo espirito foi soprado na matéria amorfa pelas narinas do Criador de modo que fosse feito à Sua imagem e semelhança.
         Se um dos aspectos mais originais do Criador é sua capacidade de criar e considerando que ao homem o mesmo legou, por ter sido feito semelhante, esta capacidade, urge, então, avaliar em que medida a própria vida humana não é um movimento de criação. A capacidade de pensar sobre pensar parece ser uma das ferramentas mais importantes da ação criadora do homem. É apenas refletindo sobre quem é, de onde veio, para onde vai e qual é o seu propósito, que o homem, autoreflexivo, cria suas ações na realidade. Assim, em certa medida, o Criador reflete seu “dom” em sua criatura.
         Então, neste sentido, em um exercício reflexivo, pode-se pressupor que, à Obra, o ato criador é tão ou mais importante do que a própria existência de um criador concedido antroporficamente. Pode parecer um paradoxo imaginar um princípio criador que não tenha um sujeito por trás, porém a própria concepção de um ser, um ente criador é um axioma, dogma.
         A questão “Deus existe?” não é um bom problema filosófico posto que em verdade coexiste com esta questão outra: “acredito ou não em Deus?”. Todavia, a resposta a estas questões não importa muito. O que importa é por qual motivo perguntam isso, a qual problema isso responde? Ademais, a partir ou consoante a esta pergunta, qual conceito de Deus será elaborado por aquele que questiona? Problema e conceito são os pontos nevrálgicos da pergunta em torno da existência, ou pré-existência, de um ser superior. Sem avaliar estes dois elementos não se faz Filosofia.
         Nietzsche, ao proclamar que Deus está morto e que nós o matamos, se dirige ao âmago do problema: Deus está morto como um axioma ou dogma eterno, como um ser que controla e conduz o mundo, como sentido último da existência humana, ou seja, Nietzsche anuncia o fim de Deus enquanto um modo de vida, uma ética, para além da discussão de ele existe ou não. O que é colocado em xeque pelo filósofo é justamente a decadência de uma moral teológica, na época, pela ascensão do niilismo. É o fim de todo idealismo e platonismo. Como lidar com a situação caótica: com a vontade de potência! Este niilismo anuncia a liberdade face ao criador e ao mesmo tempo lança um desafio: como se viver com uma liberdade nunca antes vista? Que modos de vida a existência crença em Deus implicava e que modos de vida a existência da não crença em Deus implica?
         São questões importantes, especialmente ao maçom que deposita em Deus sua fé. Por outro lado, são questões igualmente importantes ao maçom que pressupõe o Grande Arquiteto do Universo não como um ente, mas como um princípio criador.
         Para Nietzsche o que importa não é a notícia de que Deus está morto, mas o tempo que ela leva para dar frutos a partir da apropriação da vontade de potência pelos homens, justamente esta vontade de potência que deu e dá forma e força a tudo que existe no real.
         Crer que o Grande Arquiteto do Universo é um princípio criador, e não um ser, torna o candidato à iniciação um ateu inapto ao cerimonial? Ora, ao menos no Rito Escocês Antigo e Aceito, as perguntas feitas ao candidato no decurso da cerimônia esperam resposta que coloquem Deus (o do monoteísmo) como depositário da crença. Porém, se em um exercício mental fosse imaginado que a esperança do candidato fosse colocada não em um ser, mas em um princípio como a vontade de potência? Algumas consequências poderiam ser inferidas desta decisão:
         - O maçom não estaria submetido aos desígnios de difícil cognição de um ser superior, que em medida lhe trazer conforto e em parte angústia. O maçom deveria ser senhor de sua própria vida e não consequência da expressão da vontade divina.
         - A ética do maçom estaria norteada no bom uso que faria deste “dom”, que lhe é originário, denominado vontade de potência.
         - o “bom” maçom buscaria se expandir, se melhorar, promover a vida e a expansão da vida, a sua e a da sociedade.
         - o “belo” maçom seria aquele que se apropria da sua vida e, tomando atitudes autorais, encontra seu lugar no mundo.
         Estas consequências seriam possíveis diante da acepção de um ser superior governante dos mundos? Parece que não:
         - pois a crença em um governante preconiza um governado e, além disso, toda uma genealogia moral, entre as leis emanadas do poder governante e cumpridas pelos governados.
         - pois a ética do maçom estaria balizada no estreito cumprimento das leis morais preconizadas pela revelação dos textos divinos de sua religião, ou no caso dos não inseridos em denominações religiosas, aos códigos morais dos grupamentos aos quais pertencem.
         - pois o “bom” maçom procuraria cavar masmorras aos vícios e erigir templos às virtudes, sem levar em conta de que os vícios fazem parte da vida de forma muito importante da mesma maneira que as virtudes podem ser obstáculos à expansão da vida quando se colocam como um lugar a se alcançar.
         - pois o “belo” maçom é aquele que reflete as qualidades do criador, preconizadas na revelação do livro sagrado.
         Colocado isso, diante da dicotomia que se anuncia pelos limites éticos e estéticos embasados na crença em Deus (teísmo ou deísmo) e pelos limites suplantados no exercício da vontade de potência, persiste a questão: como ser maçom para além ou apesar das perspectivas deístas ou teístas sem que se declare ateu, agnóstico, imoral ou amoral?
         Pergunta complexa, porém, com possíveis caminhos:
         - é razoável pensar que é possível ser maçom tendo a crença de que o Grande Arquiteto do Universo não e um ser, mas um princípio criador, uma força capaz (ou um conjunto de forças) de gerar continuamente vida e expansão dela. Tal crença não anula a possibilidade de outro maçom ter uma postura teísta ou deísta.
         - crer em um princípio criador originário, onde o maçom deposita sua fé e, por conseguinte, a partir de onde orienta sua conduta ética e estética, não o torna ateu. Apenas entende que ao exercício da maçonaria (fazer feliz a humanidade) é mais importante fomentar a vontade de potência enquanto força criadora, do que apenas depositar  (ou somente depositar) a crença na existência de um criador incriado.
         - crer em um princípio criador como sendo o Grande Arquiteto do Universo não pressupõe que o maçom seja agnóstico pois o agnosticismo deduz a dificuldade de se proclamar reinvindicações religiosas ou metafísicas pela suposta impossibilidade de serem desconhecidas ou incognoscíveis.
         - crer em um princípio criador não torna o maçom imoral pois o exercício da vontade de potencia pressupõe uma constante avaliação genealógica dos códigos morais, ou seja, a não aceitação de leis morais sem compreender o problema ao qual elas remetem e o significado de se submeter a elas. Em nenhum momento haveria a renúncia aos códigos morais.
         -crer em um princípio criador não torna o maçom amoral, justamente porque não há a renúncia de códigos morais, mas a constante problematização de suas origens e destinos.
         Assim, conclui-se, à despeito de todo respeito que deve ser conferido às diferentes crenças e visões de mundo, sem adentrar na discussão religiosa, que é perfeitamente crível imaginar a existência de um maçom, dentro do que se espera em termos de conduta do mesmo preconizada nos rituais e leis da Ordem, que possa conceber o Grande Arquiteto do Universo enquanto um princípio criador e não necessariamente um ser superior.

Referências
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de Padre Antônio Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica, 1980.
FOUCAULT, Michael. Os corpos dóceis. In:  FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1993.
GLMERGS - GRANDE LOJA MAÇÔNICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Coletânea Maçônica. Porto Alegre: 2010.
LEBRUN, Gerard. O conceito de paixão. In: NOVAES, Adauto. O sentido da paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_________________. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letra, 2002.
_________________. Fragmentos póstumos (1875-1882).  Vol.2 Madrid: Tecnos, 2008

SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade e representação. Vol I. São Paulo: UNESP, 2005.

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