Vontade
de poder enquanto princípio criador:
da morte de Deus
até o landmark sobre a crença no Grande Arquiteto do Universo.
Márcio Moraes dos Santos, Mestre
Instalado da ARLS Feitoria Real nº122 da MRGLMERS
Acadêmico Titular da Cadeira nº
10 da ACADESUL
Dificilmente poder-se-á afirmar com
segurança os motivos pelos quais Nietzsche desenvolveu seu conceito de Vontade de Poder (ou Vontade de Potência dependendo da
tradução). Todavia, a gênese de sua obra, a partir do conjunto de proposições
ontológicas e epistemológicas, sugere que este conceito foi criado como base
para o desenvolvimento de outras ideias daquele que dizia fazer Filosofia a
golpes de martelo.
A Vontade
de Poder é uma proposição (ou como ver-se-á adiante também uma preposição)
ontológica que sustenta toda a teoria do filósofo alemão, partindo do
pressuposto, para fins didáticos, de que seria possível imaginar uma teoria de Nietzsche. Inclusive sua genealogia da moral é concebida
consoante à ideia de Vontade de Poder.
É a partir desta ideia que Nietsche construiu sua crítica tanto à Filosofia
ocidental pós-socrática quanto ao próprio cristianismo.
Contudo, para se compreender o conceito
de Vontade de Poder (ou de Potência) é necessário compreender seu
conceito oposto: a Vontade de Verdade. Esta vontade seria o desejo que motiva o
homem a uma verdade eterna e imutável que estaria por trás (ou antes) da
realidade, algo análogo à essência em
Platão. Nietzsche, com sua Vontade de
Poder, estabelece uma crítica ao crer que a Vontade de Verdade teria uma intenção prática e política de nivelar
os homens, normatizar a vida e reduzir o livre pensamento, freando os desejos e
impulsos que historicamente desenvolveram a humanidade.
Para Nietzsche a Vontade de Verdade, enquanto força de controle, se revela nas
religiões e na Filosofia pós-socrática como um desprezo pelo mundo, fazendo o
homem se dirigir para um suposto além-mundo, fomentando uma valorização de uma
criada dimensão espiritual que acabaria por desligar o homem da realidade,
tornando-o propositadamente fraco, doente e manipulável. Neste sentido, muitos
anos depois, Foucault (1993) colabora ao discutir a docilização dos corpos, o
surgimento da medicina social e os sistemas de vigilância e punição, modelos de
coerção baseado na premissa de que existe uma verdade à priori e que aqueles que a possuem também possuem um determinado
saber-poder sobre os demais.
Nesta linha, poder-se-á dizer que até
mesmo o ateísmo é uma Vontade de Verdade,
uma crítica estéril a um Deus que (segundo Nietzsche) não existe, gerando uma
atividade filosófica inútil. Nietzsche fala que a modernidade foi tomada por
uma Vontade de Verdade que atenta
contra a vida e que todos os valores que atualmente são difundidos nas
sociedades ocidentais são como doença, por serem valores infestados de
preconceitos morais que degeneram o homem. Esta estratégia fez com que o
ocidente gerasse homens fracos, “humildes” e dignos de pena. A valorização
espiritual acabou por gerar uma precariedade espiritual, fato facilmente
observável, por exemplo, pela proliferação de denominações religiosas
neopentecostais que, sob a suposta égide de serem os arautos da verdade
celestial precarizam totalmente a relação do homem com o sagrado em diversas
oportunidades. A Vontade de Verdade
é¸ para Nietzsche, uma mentira.
Por outro lado, a Vontade de Potência (ou de Poder)
é uma vontade de vida, não de saber a verdade da vida, mas de vive-la.
Nietzsche toma inicialmente este conceito (a vontade) de Schopenhauer (2005): é uma forma cega e insaciável que
estaria além dos sentidos humanos. A Vontade
de Poder representa (e a ideia de representação aqui pode ser um problema)
tudo o que pode ser visto, ou seja, a realidade, sendo assim o substrato que
constitui a existência (e não sua essência em termos platônicos).
Mas, para Nietzsche, a vontade não está fora do mundo, ela se
dá na relação, ou seja, é múltipla e se mostra como efetivação do real. É
impossível uma só força, uma força única e indivisível, posto que a Vontade de Potência se diz sempre no
plural, conjunto de forças. Sendo assim, o mundo estaria em luta constante, sem
equilíbrio possível, em tensão que se evidencia pelo movimento das forças
relacionais, às vezes delicado, outras vezes violento.
A vida é Vontade de Potência, mas não se pode restringi-la apenas à vida
biológica, posto que esta vontade
está presente em toda a realidade: desde as reações químicas mais simples até a
complexidade do psiquismo humano. É uma vontade
que procura expandir-se, superar-se, juntar-se a outras forças e se tornar
maior. Tudo no mundo, segundo Nietzsche, é Vontade
de Potência, porque todas as forças procuram sua própria expansão. Neste
espaço de instabilidade e embate de forças (ação e reação) instáveis, a
permanência e a identidade são banidas; neste mundo reina a diferença. A Vontade de Potência, pode então ser
também pensada como superação, como um constante (no sentido de reiterado) ir
para além dos próprios limites.
A vontade
se apresenta no real como sede de dominar, conquistar e ampliar
territórios, fazer-se mais forte, constranger outras forças e assimilá-las.
Urge, então, a pergunta: quanto pode uma força? A onda mecânica de som que se
propaga, a magnética que atrai nos imãs, a força da divisão celular que forma
novos tecidos, o animal que domina o outro, tudo são exemplos desta vontade, a qual permanece em constante
expansão e transformação sem nunca encontrar ponto de repouso. Cada força, expressão da vontade, quando dominante, abre novos horizontes, encontra novas
passagens, cria novos caminhos.
Analogicamente, se em Física a potência
é a capacidade de se realizar um trabalho, na Filosofia de Nietzsche a Vontade de Potência é a capacidade da vontade de efetivar-se. Para Nietzsche,
o homem não quer apenas conservar-se em suas zonas de conforto ou adaptar-se às
adversidades da vida para, então, sobreviver. Este comportamento seria típico
de um homem doente. O homem quer expansão, domínio, criação de valores,
significar e fazer sentido, enunciando assim um papel ativo na realidade ao
criar suas próprias condições de potência a partir de uma efetivação que só é
possível pelo embate das forças, dos corpos.
E o que é potência? É um eterno dizer-sim, enunciado ativo. A potência se afirma (e efetiva) na
vontade quando diz sim ao devir. O sentido é o resultado dessas
forças, que se exprime pela cognição: a vontade
aí é a Vontade do Poder, ou o que quer o poder.
Em Assim
Falou Zaratustra, Nietzsche (1998) anuncia a vontade: “eis o nome libertador e mensageiro da alegria: assim vos
ensinei eu, meus amigos”. A realização da vontade
tem por consequência a alegria, fórmula simples, mas tão ignorada.
A Filosofia de Nietzsche propõe que o
homem, para ser feliz, deva se apropriar de sua Vontade de Poder (ou de Potência)
para poder voltar a criar valores e não apenas os reproduzir. Somente assim
poderia o homem experimentar e experimentar-se no mundo, estabelecendo novas
cognições e ultrapassando os valores do seu tempo. Somente a partir desta apropriação de sua vontade poderia o homem se livrar de
toda genealogia da moral que lhe impôs uma camisa de força dogmática e moral
por séculos de civilização apoiada na transcendência. Para Nietzsche, o “poder”
da Vontade de Poder permite uma
análise imanente (e não transcendente) capaz de compreender o mundo sem ceder
às explicações metafísicas (calcadas predominantemente pelas religiões) a fim
de se promover a criação de novos sentidos, superando os atuais, em franco
movimento de superação e expansão.
A Vontade
de Poder em Nietzsche decorre de duas preposições:
- Primeira preposição: o total da força
que existe o universo é determinada, não infinita. Deduz-se que o número de
situações e combinações dessa força é mensurável (posto que finita).
- Segunda preposição: o tempo é
infinito e antes deste momento (presente) houve uma infinidade de tempo.
Ao não admitir a existência de Deus, do
Criador, Nietzsche admite que a matéria, essa energia da qual é constituído o
universo, não pode ter sido criada. Assim, ele sempre existiu e nunca foi
criada. Se ela existe não-criada ela deve estar aqui desde sempre. Existindo
desde sempre, se houvesse tendência ou estado a ser atingido, a eternidade é
tempo suficiente para que já tivesse sido atingido, pois, repisa-se, houve uma
infinidade de tempo até o agora.
Inexistindo tendência de aumento ou
extinção da força constitutiva do universo, se deduz que a força que hoje
existe tem de ter estado eternamente ativa e igual. Todos os desenvolvimentos
possíveis já devem ter acontecido (pela infinidade do tempo pregresso) e todos
os instantes seriam eternas repetições.
Ainda propõe Nietzsche que não existe
repouso nas forças, pois se elas estão em um infinito de tempo para trás em
atividade, tal estado (de repouso) já teria sido alcançado se fosse possível e
perduraria, em cumprimento a uma hipotética tendência que não se evidencia.
Esse mundo das forças (a qual Nietzsche
chama de Eterno Retorno) é circular
na medida em que retorna e sem nenhuma tendência, senão já a teria alcançado.
A partir da noção de algo originário,
nunca em repouso, mas em constante devir,
da dedução de que o embate das forças jamais encontra equilíbrio, se constrói o
conceito de Vontade de Poder,
anunciada nos textos de 1881 (nos fragmentos póstumos), em livre tradução do
espanhol:
“E sabeis... o que é pra mim o mundo? (...) Este
mundo: uma monstruosidade de força, sem princípio, sem fim, uma firme, brônzea
grandeza de força... uma economia sem despesas e perdas, mas também sem
acréscimos, ou rendimento,... mas antes como força ao mesmo tempo um e múltiplo,...
eternamente mudando, eternamente recorrentes... partindo do mais simples ao
mais múltiplo, do quieto, mais rígido, mais frio, ao mais ardente, mais
selvagem, mais contraditório consigo mesmo, e depois outra vez... esse meu
mundo dionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio, do
eternamente-destruir-a-si-próprio, sem alvo, sem vontade... Esse mundo é a
vontade de potência — e nada além disso! E também vós próprios sois essa
vontade de potência — e nada além disso!” (NIETZSCHE, 2008)
Usando a terminologia de Nietzsche, a Vontade de Poder é uma lei originária
(sempre existiu), sem exceção nem transgressão. Vontade de Poder não está desta
forma relacionada a nenhum tipo de força física, dinâmica ou outra, mas é a lei
originária que rege estas forças secundárias na economia deste sistema chamado
universo, ou mundo. É a essência (tendo todo o cuidado com esta terminologia) e
a própria “luta das forças” que formam a economia universal, impulso que reage
e resiste no interior das forças, uma multiplicidade de forças que em suas
graduações se manifesta na sua forma última em fenômenos políticos, culturais,
astronômicos, permeando a natureza e o próprio homem. Com isso, o filósofo
proclama que a Vontade de Poder não é
algo criado ou que dependa de algo precedente, como teorias, religiões ou
cosmogonias pois esta força é a própria realidade.
Vontade
de Poder
não é teológica ou dogmática. É o modo como se comporta aquilo que não pode ter
finalidade ou sentido (o sentido da vida, a finalidade da vida humana, etc).
Para Nietzsche a Vontade de Poder não
é um ser, nem um devir (um tornar a
ser), é um pathos, no sentido dado
por Descartes de que “tudo o que se faz
ou acontece de novo é geralmente chamado (pelos filósofos) de pathos” (LEBRUN,
1987, p. 17). A Vontade de Poder é um adoecimento de si mesmo, uma forma possível
de se visitar o interior da terra. O
conceito de vontade de poder pode também ser entendido como o desejo insaciável
de se ser mais do que aquilo que se é presentemente.
Não há, pois, nada anterior ou posterior
à Vontade de Poder no real. A
realidade é a expressão desta vontade.
Não há um fora do mundo, um plano metafísico a ser atingido. Há apenas um mundo
visto de dentro:
“O mundo visto de dentro, o mundo determinado por
seu ‘caráter inteligível’ – seria justamente ‘vontade de potência’, e nada
mais.”
(NIETZSCHE, 2002, §36)
Até este ponto foi possível, em parte,
dar razoável clareza à concepção de Nietzsche em torno de sua Vontade de Poder (ou Potência), reiterando que se fala acerca
da vontade (de expansão) da potência (de vida). A partir disso
pode-se, então, iniciar a análise de um importante landmark da Maçonaria, à luz do Deus morto de Nietzsche. Repisa-se,
para fins históricos, que os landmarks,
limites balizadores da Maçonaria, apareceram pela primeira vez, com esta
expressão, na compilação dos Regulamentos Gerais de 1721, incluído na
Constituição de James Anderson.
“19º Landmark: A negação da crença no Grande
Arquiteto do Universo é impedimento absoluto e insuperável para a iniciação.” (GLMERGS, 2010)
O candidato, para ser admitido maçom,
dentre tantos outros critérios, presta uma série de juramentos de obediência,
sob proteção do Grande Arquiteto do Universo. Em diversos rituais, inclusive no
ritual de iniciação, a Maçonaria, em especial o Rito Escocês Antigo e Aceito,
designa Deus como sendo o Grande Arquiteto do Universo. Este Deus maçônico
representaria todas a deidades de todas as crenças, posto que na Maçonaria se
admitem homens de todas as religiões e inclusive os que não professam religiões
mas acreditam em um princípio criador ou em um ser superior, o que evoca a
tendência quase hegemônica das obediências maçônicas adotarem posturas
monoteístas. Evidentemente que o Rito Escocês Antigo e Aceito, por exemplo, tem
fortes influências do judaísmo e do cristianismo.
Ora, por mais que a Maçonaria preste
seus juramentos sobre um livro sagrado de revelação e que, mais radicalmente, o
Rito Escocês adote a bíblia sagrada como livro ritualístico, não é correto
afirmar que a Ordem tem postura teísta (baseada na revelação). Pelo contrário,
uma série de características dela acabam por configurar condutas deístas:
a)
Exige-se
a crença em um Grande Arquiteto do Universo, ente superior e criador, sem a
obrigação da prática de uma religião.
b)
Estimula-se
o uso da razão para conhecer e interpretar, sem a ascendência dogmática da
palavra revelada.
c)
Defende-se
a liberdade de se encontrar a espiritualidade na religião que lhe for mais
aprazível.
d)
Estimula-se
o livre pensamento, cujas convicções não decorem por força de uma tradição ou
de uma autoridade decorrente de outros.
Se por um lado o deísmo se coloca como
postura filosófico-religiosa que admite a existência de um Deus criador, por
outro questiona a ideia da “inquestionável” revelação divina, ou seja, o texto
sagrado, escrito por homens, não traduz nenhuma revelação deste Deus em termos
literais. A razão, ao deísta, seria a única capaz de assegurar a existência de
Deus, descartando-se a necessidade da prática de alguma religião institucional.
O teísmo, por outro lado, é a crença na
existência de deuses, um ou mais, havendo ou não hierarquia entre eles. Algumas
religiões são teístas e especialmente as religiões monoteístas dos judeus e dos
cristãos influenciaram a Maçonaria.
Esclarecidos estes conceitos e
justificada a ideia de que a Maçonaria ora transita por condutas teístas e em
outros momentos por ideias deístas, abre-se a pergunta salutar:
“E
se o Grande Arquiteto do Universo não fosse um Deus, concebido sob preceitos
antropomórficos? E se ao invés de um sujeito ele fosse uma ação?”
Imediatamente, para responder a esta
pergunta é importante remeter ao texto sagrado:
“No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com
Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas
foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se faz..” (JOÃO 1:1-3 in
BIBLIA, 1980)
Ora, sem forçar uma exegese, fica claro
que há uma subjetivação da ação. Verbo, no texto, é um sujeito, mas mais do que
isso, um sujeito em ação.
A crença maçônica no Criador incriado,
ser superior, pressupõe que houve um princípio da criação e, que antes deste
ponto temporal, tal Criador existia e infinitamente sempre existiu. Assim,
todas as coisas decorridas após a criação seriam criaturas. Contudo, utilizando
o mesmo texto sagrado, podemos remeter a criação de Adão, cujo espirito foi
soprado na matéria amorfa pelas narinas do Criador de modo que fosse feito à
Sua imagem e semelhança.
Se um dos aspectos mais originais do
Criador é sua capacidade de criar e considerando que ao homem o mesmo legou,
por ter sido feito semelhante, esta capacidade, urge, então, avaliar em que
medida a própria vida humana não é um movimento de criação. A capacidade de
pensar sobre pensar parece ser uma das ferramentas mais importantes da ação
criadora do homem. É apenas refletindo sobre quem é, de onde veio, para onde
vai e qual é o seu propósito, que o homem, autoreflexivo, cria suas ações na
realidade. Assim, em certa medida, o Criador reflete seu “dom” em sua criatura.
Então, neste sentido, em um exercício
reflexivo, pode-se pressupor que, à Obra, o ato criador é tão ou mais
importante do que a própria existência de um criador concedido
antroporficamente. Pode parecer um paradoxo imaginar um princípio criador que não
tenha um sujeito por trás, porém a própria concepção de um ser, um ente criador
é um axioma, dogma.
A questão “Deus existe?” não é um bom
problema filosófico posto que em verdade coexiste com esta questão outra:
“acredito ou não em Deus?”. Todavia, a resposta a estas questões não importa
muito. O que importa é por qual motivo perguntam isso, a qual problema isso
responde? Ademais, a partir ou consoante a esta pergunta, qual conceito de Deus
será elaborado por aquele que questiona? Problema e conceito são os pontos
nevrálgicos da pergunta em torno da existência, ou pré-existência, de um ser
superior. Sem avaliar estes dois elementos não se faz Filosofia.
Nietzsche, ao proclamar que Deus está
morto e que nós o matamos, se dirige ao âmago do problema: Deus está morto como
um axioma ou dogma eterno, como um ser que controla e conduz o mundo, como
sentido último da existência humana, ou seja, Nietzsche anuncia o fim de Deus
enquanto um modo de vida, uma ética, para além da discussão de ele existe ou
não. O que é colocado em xeque pelo filósofo é justamente a decadência de uma
moral teológica, na época, pela ascensão do niilismo. É o fim de todo idealismo
e platonismo. Como lidar com a situação caótica: com a vontade de potência! Este niilismo anuncia a liberdade face ao
criador e ao mesmo tempo lança um desafio: como se viver com uma liberdade
nunca antes vista? Que modos de vida a existência crença em Deus implicava e
que modos de vida a existência da não crença em Deus implica?
São questões importantes, especialmente
ao maçom que deposita em Deus sua fé. Por outro lado, são questões igualmente
importantes ao maçom que pressupõe o Grande Arquiteto do Universo não como um
ente, mas como um princípio criador.
Para Nietzsche o que importa não é a
notícia de que Deus está morto, mas o tempo que ela leva para dar frutos a
partir da apropriação da vontade de
potência pelos homens, justamente esta vontade
de potência que deu e dá forma e força a tudo que existe no real.
Crer que o Grande Arquiteto do Universo
é um princípio criador, e não um ser, torna o candidato à iniciação um ateu
inapto ao cerimonial? Ora, ao menos no Rito Escocês Antigo e Aceito, as
perguntas feitas ao candidato no decurso da cerimônia esperam resposta que
coloquem Deus (o do monoteísmo) como depositário da crença. Porém, se em um
exercício mental fosse imaginado que a esperança do candidato fosse colocada
não em um ser, mas em um princípio como a vontade
de potência? Algumas consequências poderiam ser inferidas desta decisão:
- O maçom não estaria submetido aos
desígnios de difícil cognição de um ser superior, que em medida lhe trazer
conforto e em parte angústia. O maçom deveria ser senhor de sua própria vida e
não consequência da expressão da vontade divina.
- A ética do maçom estaria norteada no
bom uso que faria deste “dom”, que lhe é originário, denominado vontade de potência.
- o “bom” maçom buscaria se expandir,
se melhorar, promover a vida e a expansão da vida, a sua e a da sociedade.
- o “belo” maçom seria aquele que se
apropria da sua vida e, tomando atitudes autorais, encontra seu lugar no mundo.
Estas consequências seriam possíveis
diante da acepção de um ser superior governante dos mundos? Parece que não:
- pois a crença em um governante
preconiza um governado e, além disso, toda uma genealogia moral, entre as leis
emanadas do poder governante e cumpridas pelos governados.
- pois a ética do maçom estaria
balizada no estreito cumprimento das leis morais preconizadas pela revelação
dos textos divinos de sua religião, ou no caso dos não inseridos em
denominações religiosas, aos códigos morais dos grupamentos aos quais
pertencem.
- pois o “bom” maçom procuraria cavar
masmorras aos vícios e erigir templos às virtudes, sem levar em conta de que os
vícios fazem parte da vida de forma muito importante da mesma maneira que as
virtudes podem ser obstáculos à expansão da vida quando se colocam como um
lugar a se alcançar.
- pois o “belo” maçom é aquele que
reflete as qualidades do criador, preconizadas na revelação do livro sagrado.
Colocado isso, diante da dicotomia que
se anuncia pelos limites éticos e estéticos embasados na crença em Deus (teísmo
ou deísmo) e pelos limites suplantados no exercício da vontade de potência, persiste a questão: como ser maçom para além
ou apesar das perspectivas deístas ou teístas sem que se declare ateu,
agnóstico, imoral ou amoral?
Pergunta complexa, porém, com possíveis
caminhos:
- é razoável pensar que é possível ser
maçom tendo a crença de que o Grande Arquiteto do Universo não e um ser, mas um
princípio criador, uma força capaz (ou um conjunto de forças) de gerar
continuamente vida e expansão dela. Tal crença não anula a possibilidade de
outro maçom ter uma postura teísta ou deísta.
- crer em um princípio criador
originário, onde o maçom deposita sua fé e, por conseguinte, a partir de onde
orienta sua conduta ética e estética, não o torna ateu. Apenas entende que ao
exercício da maçonaria (fazer feliz a humanidade) é mais importante fomentar a vontade de potência enquanto força
criadora, do que apenas depositar (ou
somente depositar) a crença na existência de um criador incriado.
- crer em um princípio criador como
sendo o Grande Arquiteto do Universo não pressupõe que o maçom seja agnóstico
pois o agnosticismo deduz a dificuldade de se proclamar reinvindicações
religiosas ou metafísicas pela suposta impossibilidade de serem desconhecidas
ou incognoscíveis.
- crer em um princípio criador não
torna o maçom imoral pois o exercício da vontade
de potencia pressupõe uma constante avaliação genealógica dos códigos
morais, ou seja, a não aceitação de leis morais sem compreender o problema ao
qual elas remetem e o significado de se submeter a elas. Em nenhum momento
haveria a renúncia aos códigos morais.
-crer em um princípio criador não torna
o maçom amoral, justamente porque não há a renúncia de códigos morais, mas a
constante problematização de suas origens e destinos.
Assim, conclui-se, à despeito de todo
respeito que deve ser conferido às diferentes crenças e visões de mundo, sem
adentrar na discussão religiosa, que é perfeitamente crível imaginar a
existência de um maçom, dentro do que se espera em termos de conduta do mesmo
preconizada nos rituais e leis da Ordem, que possa conceber o Grande Arquiteto
do Universo enquanto um princípio criador e não necessariamente um ser
superior.
Referências
BÍBLIA.
Português. Bíblia Sagrada. Tradução
de Padre Antônio Pereira de Figueiredo. Rio de Janeiro: Encyclopaedia
Britannica, 1980.
FOUCAULT,
Michael. Os corpos dóceis. In: FOUCAULT, Michael. Vigiar e punir: nascimento
da prisão. Petrópolis: Vozes, 1993.
GLMERGS
- GRANDE LOJA MAÇÔNICA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Coletânea Maçônica.
Porto Alegre: 2010.
LEBRUN,
Gerard. O conceito de paixão. In:
NOVAES, Adauto. O sentido da paixão.
São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
NIETZSCHE,
Friedrich. Assim falou Zaratustra.
São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
_________________. Além do bem e do mal. São Paulo:
Companhia das Letra, 2002.
_________________.
Fragmentos póstumos (1875-1882). Vol.2 Madrid: Tecnos, 2008
SCHOPENHAUER,
Arthur. O Mundo como vontade e
representação. Vol I. São Paulo: UNESP, 2005.
Nenhum comentário:
Postar um comentário