A vida para além da morte
Márcio Moraes, M\I\
Acadêmico da
Cadeira nº10 da ACADESUL
Eis que tendo travado uma luta com seu
irmão Seth, o qual ambicionava se apoderar do reino do Egito, Osíris sai
golpeado e seu corpo esquartejado. Dos pedaços, que foram espalhados por todos
os lugares, saiu sua irmã Isis em busca. Junta todos, à exceção do pênis, que
jogado no Nilo fora devorado por um peixe que o levou ao fundo do Rio, inviabilizando-se
assim o retorno de Osíris ao mundo dos vivos.
Muito tempo após a morte do Osíris, Isis pousada sob o cadáver de Osíris
é fecundada com Hórus. Hórus, nascido, busca vingar o pai e na batalha em que
vence Seth tornando-se rei dos vivos perde seu olho esquerdo, o olho da Lua.
Está é apenas uma das possíveis versões desta lenda milenar.
O Sol, em uma Loja, é o Venerável
Mestre e inicia sua jornada no Oriente, onde aquele toma seu assento. A
transmissão da palavra sagrada faz-se assim, por analogia, movimentação solar,
que leva a luz (a própria palavra) a todos os quadrantes da Loja. A energia
vibracional que circula com o som da palavra entra e se mistura em todo
recipiendário que a ouve. Certamente as oscilações sonoras, absorvidas pelo
corpo vibrátil do maçom, produzem seus efeitos. É desta interação de
frequências oscilatórias, de um lado da palavra sagrada e de outro da própria
pedra bruta, que emerge uma terceira frequência, ressonante à combinação das
suas constituintes. A ressonância se propaga, para cima e para baixo, no
sentido hermético. Acima, encontra outras ressonâncias, de frequências mais
altas. Abaixo, encontra também outras ressonâncias, porém de frequências mais
baixas, e por isso mais permeáveis às ondas que emana. Uma onda de energia permeia com mais
facilidade as ondas de frequência mais baixas.
O maçom, pedra bruta ressonante, provoca
alterações nos mundos superiores, em menor proporção, e nos mundos inferiores,
em maior proporção. Da mesma forma,
recebe a influência das vibrações que ressoam nos mundo superiores em maior
proporção do que aquelas que lhe penetram vindas dos mundos inferiores. Assim,
somos diretamente responsáveis pelos progressos de baixo, assim como somos em
parte determinados pelos progressos de cima. É a lei hermética da
correspondência: “o que está em cima é
como o que está embaixo e o que está embaixo é como o que está encima”.
A frequência vibrátil, genuína
manifestação da vida originada pela palavra, colide com a pedra bruta, se
fragmenta em diversas harmônicas ressonantes. Já não se consegue mais, pela
união das ressonantes resultantes, obter o som primordial. É tal qual Osíris
mutilado onde a questão primordial não é trazê-lo do mundo inferior, mas a
partir dele fazer nascer Hórus.
Quando, em Loja, recebemos a palavra
sagrada ou qualquer tipo de instrução somos provocados a repetir o som,
eventualmente repetir a instrução para novos irmãos. Por mais que a palavra
circulante em tese seja a mesma e que nossos ouvidos nos digam da imutabilidade
dela, no nível vibracional, o sujeito que a enuncia coloca sua energia na
enunciação. Já não importa necessariamente o que se diz, mas de onde se diz.
Qual pedra produz aquele som, eis a boa pergunta. As pedras se transformam pela
passagem da onda e retornam ondas que são sínteses desta transformação.
A transmissão do conhecimento maçônico
se baseia em uma suposta repetição. Ao aprendiz se pergunta como se pode saber
sê-lo um, no que responde: “pelo sinal,
pela palavra, pelo toque e pela repetição das formalidades de minha iniciação”.
Ora,
por acaso são iguais os sinais, os toques e as palavras? E as tais formalidades
são iguais? Notadamente, sem que seja necessário se adentrar em um estudo
histórico bibliográfico sabemos que há uma série de divergências longitudinais (ditas
temporais) e transversais (ditas ritualísticas) nestes sinais de reconhecimento
que em tese deveriam ser permanentes conforme o landmark. Parece que a existência de sinais de reconhecimento é
menos perene que os sinais em si.
E se, por apenas um exercício mental,
que nos é fundamental à perpetuação da Ordem, crêssemos na efemeridade destes
sinais? Estaríamos crendo que a repetição é possível e necessária e que temos a
capacidade de experimentar e atuar situações sem que nosso lugar e condição
possam afetar tais fenômenos.
Deixaríamos de ser pedra ressonante e nos tornaríamos espécie de espelho
que não se deixa tocar e que tudo reflete.
As experiências afetivas demonstram
facilmente que somos seres permeáveis aos afetos que desenvolvemos com nossos
pares. Não somos espelhos frios. Reconhecer teria relação assim com conhecer
novamente, conhecer o novo, de novo, e não identificar um
padrão de repetição. Em toda repetição haveria, pois, uma espécie de
transgressão à identidade. Toda palavra que circula, todo sinal que é repetido,
não seria idêntico a si mesmo, ao primeiro sinal feito, à primeira palavra
enunciada. Perdeu-se e buscamos esta tal palavra perdida como se fosse possível
encontra-la fora de si mesmo.
Nem todo conhecimento do panteão egípcio
pôde repetir o Osíris primevo. Só quando Isis percebe a fragilidade da duração
(Osíris não é e é eterno ao mesmo tempo) que se cria a possibilidade para o
surgimento de Hórus. Osíris, castrado, insiste e persiste, soa e ressoa sua
energia vibracional no Hórus, que por sua vez igualmente leva a marca da
energia primordial: é castrado do olho, do poder do olho, simbolizado a partir
do século XVII com o olho que tudo vê.
A morte de um, habita a vida de outro, e vice-e-versa. É como se a vida fosse a
somatória da energia cósmica e que esta fosse uma constante e que suas
componentes mudassem na medida em que os corpos entre si interagissem.
Neste sentido, a circulação na
Maçonaria, expressão real da vida, seja talvez mais importante que o que
circula, ou quem circula. É pela circulação que a energia se move e a tudo
permeia, transformando a natureza dos corpos e da própria energia. Quão belo é
ver, por exemplo, o Venerável Mestre chegar ao ápice da alegoria do mundo
superior para depois, em ressonância à Lei da Catência, retornar à Guarda do
Templo, permeando-se novamente das energias do mundo inferior, que lhe são
afinal constituintes e determinantes desde o sempre. A circulação aí seria a
antítese da repetição. O Venerável Mestre que repete o encargo de Guarda do Templo já não é mais o mesmo, mas
precisa reconhecer, ou seja, conhecer de novo, aquele lugar esotérico, para,
descendo, então subir. Não repete um evento que já experimentou. Circula por um
lugar por onde já passou, mas que agora lhe parece estranhamente novo no
sentido dado por Marcel Proust: “A
verdadeira viagem do descobrimento não consiste em procurar novas paisagens,
mas em ver com novos olhos.”
E, nesta cadência de catências, sobe e
desce, emana sons, é atravessado por sons, ressoa sons, transforma e é
transformado, em cima e embaixo, para então somente assim, evoluindo o que lhe
rodeia conseguir evoluir. Osíris só vive por causa de Hórus e este só vive por
causa daquele. Não se cuida de repetir formalidades ritualísticas, tampouco
crer que rituais são meras repetições. Não há a repetição. O que há é a
diferença, e para, além disso, a marca da diferença. A repetição é uma conduta
necessária e fundada apenas em relação ao que, em tese, não pode ser
substituído. Repetir é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular,
algo que não tem semelhante ou equivalente. Inexiste aquilo que não possua seu
equivalente. Inexiste a repetição. A palavra que o Venerável Mestre emana do
oriente chega justa e perfeita ao Irmão Segundo Vigilante, mas não repetida, tampouco
igual, no sentido vibracional.
A diferença é o princípio constitutivo
da natureza, é aquilo que modifica para evoluir e evolui para modificar. A
maçonaria é universalmente constituída de diferenças. Desde os tempos mais
remotos, a filosofia sempre demonstrou ter uma espécie de repulsa por tudo
aquilo que se modifica, uma repulsa pelo próprio tempo e pela degradação
inevitável que ele acarreta nos seres. Não pode haver ciência daquilo que está
em perpétua transformação - assim Platão rejeita o mundo sensível em prol de
uma existência imutável (a do mundo das essências). A mudança, o rio que não
para de fluir, o movimento incessante das coisas como o próprio ser deste
mundo, tudo isto deve ser ignorado pela razão, uma vez que sua natureza
estritamente lógica não sabe lidar senão com a semelhança e a identidade nos
seres.
Diz-se a Maçonaria uma Ordem
progressista, no Brasil inclusive sob o ícone de nossa bandeira “ordem e
progresso”. Crê-se que a repetição de atos prescritos em leis e em formalidades
pode garantia a ordem e que é somente na ordem que a evolução, equiparada ao
vocábulo progresso, pode surgir. A Lei da Catência, já comentada, diz
claramente que um ente chegará em determinada etapa de sua etapa evolutiva que
será mais fácil regredir para então se impulsionar ao progresso suplantando
assim a etapa ulterior.
Isis tentou ordenar os pedaços de
Osíris, mas não progrediu em seu intento de dar vida ao amado. É a diferença,
enquanto acontecimento inusitado que emerge do encontro dos copos (a mortalha
de Osíris e as lágrimas de Isis) que possibilita o progresso da humanidade. A
repetição manteria o status quo, da
zona de conforto, violaria a seleção natural das espécies, acabaria com as
evoluções mutacionais, conduziria à morte em vida, ao eterno retorno do mesmo,
no sentido dado de forma provocativa por Nietzsche:
E se um dia
ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te
dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de
vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo,
cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de
indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na
mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as
árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da
existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da
poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o
demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em
que lhe responderías: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!"
Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te
transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada
coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o
mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem
contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última,
eterna confirmação e chancela?" (Friedrich Nietzsche em A Gaia Ciencia)
A diferença entre os maçons é justamente
este espaço entre os maçons. Zona de força, espaço de ressonâncias, o espaço
delimitado pelas duas linhas, portal ascensional, enfim, tudo que há entre o
norte e sul é a diferença. É neste embate, nestas adversidades, que circula a
palavra sagrada mudando e se deixando mudar, em sua natureza, mas não em sua
potência.
O que devemos buscar não é a ordem
(forma de organizar elementos), calcada ou recalcada na repetição, mas a Ordem
projetada pela potência, pela vontade de potência em progredir: o tornar-se
hoje mais livres do que fomos ontem e assim sucessivamente.
Somente quando percebermos que os pedaços
de Osíris unidos são maiores que o Osíris primevo e que a suposta impotência
anunciada pela castração é o acontecimento que anuncia e potencializa a
diferença simbolizada pelo advento de Hórus, poderemos então empreender a
grande aventura existencial. Entenderemos que somos muito mais constituídos por
aquilo que nos transborda, pelos sons que ressonamos, do que por aquilo que
supostamente nos falta, pelos sons que buscamos. O que circula é o eterno
retorno, do novo.
“A grande aventura existencial consiste
em empreender uma longa jornada e depois de terminá-la chegar ao mesmo ponto de
origem e admirá-lo como se fosse a primeira vez que o vê”.(Marcel Proust na
obra Em Busca do Tempo Perdido)
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REFERÊNCIAS
COLETÂNEA
MAÇÔNICA: Landmarks, Porto Alegre:
Grande Loja Maçônica do Estado do Rio Grande do Sul, 2008.
DELEUZE,
Gilles. Diferença e Repetição.
Lisboa: Relógio D´Água, 2000.
NICOLA,
Ubaldo. Antologia Ilustrada de
Filosofia: das origens à Idade Moderna. São Paulo: Globo, 2006.
NIETSZCHE,
Friedrich. A Gaia Ciência. 1. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PLATÃO.
A República. São Paulo: Nova
Cultural, 1997.
PROUST,
Marcel. Em Busca do Tempo Perdido: no
caminho de Swann. Vol. 1. São Paulo: Globo, 2006.
RITUAL
DO GRAU DE APRENDIZ MAÇOM: Rito Escocês Antigo e Aceito. Porto Alegre: Grande
Loja Maçônica do Estado do Rio Grande do Sul, 2008.
SEGANFREDO,
Carmen; FRANCHINI, A.S. As Melhores
Histórias da Mitologia Egípcia. 1. ed. Porto Alegre: L&PM, 2006.
Longo texto, muito interessante. Há muito a se aprender, para começar a compreender as profundidade do que aí está contido.
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